Paracetamol: Da Ação Terapêutica ao Potencial Tóxico
- siteconscienciaufr
- 9 de abr.
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O Que é o Paracetamol?
O paracetamol, também conhecido como acetaminofeno, é um fármaco amplamente utilizado por suas propriedades analgésicas (alívio da dor) e antipiréticas (redução da febre). Assim, pode ser utilizado para aliviar, de forma temporária, dores associadas a gripes e resfriados comuns, dor de cabeça, dor de dente, dor nas costas, dores musculares, dores associadas a artrites, dores de cólica menstrual e reações pós-vacinais. Pode ser encontrado em diversas apresentações, como comprimidos, cápsulas, gotas, xaropes, soluções injetáveis e até pastilhas. Está disponível como medicamento isento de prescrição médica (MIP), ou seja, pode ser adquirido sem receita, além de ser de baixo custo, sendo considerado de fácil acesso.
Devido ao seu fácil acesso e à venda livre, o paracetamol é um dos medicamentos mais utilizados pela população, o que também o torna um dos mais frequentemente associados a casos de intoxicação por uso indevido. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 50% dos medicamentos no mundo são utilizados de forma incorreta, e uma grande parte dos pacientes não segue as instruções de uso corretamente. Esse comportamento é um reflexo do problema global do uso irracional de medicamentos, que afeta negativamente os sistemas de saúde e a segurança dos pacientes.
Exemplos de Medicamentos que contém paracetamol em sua formulação: Tylenol, Tylenol Sinus, Tylex, Tylidol, Tylemax, Cefalium, Dorilax, Cimegripe, Resfenol.
Como o Paracetamol Atua no Organismo?
Quando estamos com alguma infecção, como uma gripe ou virose, nosso corpo reage liberando substâncias chamadas "agentes pirogênicos". Eles são como sinais de alerta que sinalizam ao hipotálamo (região do cérebro que regula a temperatura do corpo) para aumentar a temperatura corporal, gerando a febre. Isso acontece porque esses agentes ativam as enzimas ciclo-oxigenases (COX), que levam à produção de uma substância chamada de prostaglandina no Sistema Nervoso Central (SNC). A prostaglandina, portanto, é a responsável por aumentar a dor e a febre.
É aí que entra o paracetamol! Esse fármaco tem como mecanismo de ação a inibição da enzima COX, presente no SNC. Quando essa enzima é bloqueada, o corpo produz menos prostaglandina — e com isso, a febre diminui e a dor alivia.
Farmacocinética: Como o Corpo Processa o Paracetamol?
A absorção do paracetamol é rápida, ocorrendo principalmente no trato gastrointestinal. A biodisponibilidade varia entre 60% a 95%, e a concentração plasmática máxima é alcançada em 30 minutos (forma líquida) ou 45-60 minutos (comprimido oral). Sua meia-vida varia entre 2 a 4 horas, podendo se estender até 12 horas em casos de superdosagem. A eliminação se dá, principalmente, pelos rins.
O paracetamol é metabolizado no fígado por três vias principais: Glicuronidação, Sulfatação e Oxidação.
Efeitos Adversos e Riscos da Intoxicação
Quando o Paracetamol se Torna Perigoso?
O risco mais grave associado ao paracetamol é a hepatotoxicidade, que ocorre em casos de superdosagem. Em adultos, doses acima de 10g a 15g e em crianças acima de 150mg/kg já são consideradas tóxicas. A automedicação, erro de dosagem, e até tentativas de suicídio são causas comuns de intoxicação.
A maior parte do paracetamol é conjugada no fígado por vias como glicuronidação e sulfatação, formando metabólitos que são facilmente eliminados pela urina. No entanto, uma pequena parte dele é transformada pela enzima CYP2E1 (do sistema citocromo P450) em um metabólito tóxico, NAPQI (N-acetil-p-benzoquinonaimina). Esse metabólito é altamente reativo e, se não for neutralizado, pode causar danos às células do fígado (hepatócitos).
Em situações normais, o organismo neutraliza o NAPQI através de uma substância protetora chamada glutationa (GSH), que é um potente antioxidante produzido naturalmente no fígado. A glutationa se liga ao NAPQI, formando um composto inofensivo que é eliminado sem causar prejuízos.
Quando há uma ingestão excessiva de paracetamol, a produção de NAPQI aumenta muito além do que o fígado é capaz de neutralizar. Os estoques de glutationa se esgotam (depleção de GSH), e o NAPQI que sobra fica livre na corrente sanguínea, ligando-se diretamente às células do fígado. Esse acúmulo leva a um processo chamado necrose hepatocelular centrolobular — uma morte celular localizada no centro do lóbulo hepático, onde a atividade metabólica é mais intensa. Em seguida, pode ocorrer uma resposta inflamatória mediada pelas células de Kupffer, células imunológicas do fígado que agravam ainda mais a lesão.
Fases da Intoxicação por Paracetamol
A intoxicação por paracetamol pode não causar sintomas iniciais. Quando grave, os sinais surgem em estágios e incluem náuseas, vômitos, anorexia e dor abdominal. Pode haver insuficiência renal, pancreatite e, após 5 dias, a lesão hepática pode melhorar ou evoluir para falência de múltiplos órgãos, podendo ser fatal.
A intoxicação é dividida em quatro fases:
Fase 1 (0-24h): Assintomática ou com sintomas inespecíficos como náuseas, vômitos, anorexia e mal-estar.
Fase 2 (24-72h): Pode persistir sem sintomas, ou surgir sinais de lesão hepática.
Fase 3 (72-96h): Desenvolvimento de insuficiência hepática grave, podendo causar edema cerebral, hemorragias, e até levar à morte.
Fase 4 (96h - 2 semanas): Recuperação gradual do tecido hepático, caso o paciente sobreviva.
Tratamento da Intoxicação
O tratamento da intoxicação por paracetamol depende do tempo decorrido desde a ingestão, da quantidade ingerida e da presença de sintomas. Quanto mais cedo for iniciado, maiores são as chances de recuperação sem danos ao fígado.
Primeiros socorros: carvão ativado
Nos primeiros minutos ou poucas horas após a ingestão acidental ou proposital de uma grande dose de paracetamol, o carvão ativado pode ser administrado, geralmente em dose de 1g por quilo de peso corporal (máximo 50g). Ele atua como uma “esponja”, ligando-se ao fármaco ainda presente no estômago e impedindo sua absorção pelo organismo. Esse procedimento é mais eficaz quando realizado em até 4 horas após a ingestão, ou mesmo quando o tempo de ingestão é incerto.
Antídoto: N-acetilcisteína (NAC)
O principal tratamento da intoxicação é a N-acetilcisteína (NAC), um antídoto muito eficaz. Ela atua repondo os estoques de glutationa no fígado, permitindo que o organismo volte a neutralizar o metabólito tóxico NAPQI, evitando o dano hepático. O ideal é que sua administração seja feita nas primeiras 8 horas após a ingestão, podendo ser administrada por via oral ou endovenosa.
Quando a NAC é indicada?
A NAC deve ser iniciada nos seguintes casos:
Concentração de paracetamol no sangue acima da linha de risco do nomograma de toxicidade.
Ingesta suspeita acima da dose tóxica, especialmente se o exame de sangue não estiver disponível nas primeiras 8 horas.
Tempo de ingestão desconhecido e concentração sérica ≥10 mcg/mL.
Sintomas de lesão hepática, como alterações em exames de fígado (AST e ALT).
E se a intoxicação for crônica?
Mesmo em casos de intoxicação crônica (pequenas doses em excesso por vários dias), a NAC pode ser indicada:
Se a concentração sérica de paracetamol for >20 mcg/mL.
Ou >10 mcg/mL, com fatores de risco e sinais de dano hepático.
Paracetamol e Consumo de Álcool: Uma Combinação Perigosa
A combinação do paracetamol com o álcool, especialmente em pessoas que consomem bebidas alcoólicas com frequência ou em grandes quantidades, pode aumentar o risco de toxicidade hepática (lesão no fígado).
O álcool interage com o paracetamol de duas maneiras:
Em consumo crônico (bebida frequente):
o O álcool estimula a produção da enzima CYP2E1, que transforma o paracetamol em NAPQI (substância tóxica).
o Ao mesmo tempo, o álcool reduz os níveis de glutationa no fígado. Isso cria uma situação em que mais NAPQI é produzido, mas o fígado tem menos capacidade de neutralizá-lo — aumentando o risco de lesão hepática, até mesmo com doses normais de paracetamol.
Em consumo agudo (bebida pontual):
o Curiosamente, quando o álcool ainda está presente no corpo, ele pode inibir temporariamente a ação da enzima CYP2E1, reduzindo a formação de NAPQI. Ou seja, em alguns casos, o álcool pode ter um efeito protetor passageiro contra o NAPQI. No entanto, após o álcool ser eliminado do organismo, a enzima continua ativada, o que pode aumentar a produção de NAPQI por horas ou dias.
Riscos Práticos:
Pessoas que consomem álcool regularmente devem limitar a dose diária de paracetamol a no máximo 2g por dia (em vez dos 4g recomendados para adultos saudáveis).
Alcoólatras crônicos estão mais suscetíveis à toxicidade porque geralmente apresentam lesão hepática pré-existente, deficiência de glutationa e maior indução enzimática.
O momento da ingestão também é crucial: tomar paracetamol pouco tempo depois de beber álcool pode parecer seguro, mas ainda assim representar risco por causa do efeito prolongado da indução enzimática no fígado.
Além disso, esses pacientes costumam procurar atendimento tardiamente, o que agrava o prognóstico da intoxicação.
Contraindicações: Quando o Uso Deve Ser Evitado?
Embora o paracetamol seja considerado um medicamento seguro quando usado corretamente, existem situações em que seu uso deve ser evitado, principalmente em determinadas condições de saúde. Vale mencionar, que todas as contra indicações devem passar primeiramente por consultas medicas.
Alergia ou Hipersensibilidade: pessoas que já apresentaram reações alérgicas ao paracetamol não devem usar o medicamento. Essas reações podem incluir coceira, vermelhidão, inchaço e até dificuldade para respirar.
Doenças Graves do Fígado (Insuficiência Hepática): o fígado é o órgão responsável por metabolizar o paracetamol. Por isso, em caso de doenças ou insuficiência hepáticas, o uso pode agravar o quadro e aumentar o risco de toxicidade.
Doença Renal Crônica: o rim é o principal órgão de excreção do medicamento. Assim, em caso de doenças que afetem esse órgão, o medicamento pode se acumular no organismo, aumentando o risco de efeitos colaterais.
Gravidez: o uso do paracetamol isolado é geralmente considerado seguro durante a gravidez quando usado sob orientação médica. No entanto, medicamentos associados a outras substâncias (como o Resfetamol) são contraindicados durante a gestação, pois podem afetar o desenvolvimento do bebê.
Uso Simultâneo de Outros Medicamentos: o uso simultâneo de vários medicamentos pode aumentar o risco de interações indesejadas.
REFERÊNCIAS
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ESCRITO POR: Caroline Menezes (aluna de graduação em Farmácia - UFRJ)
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