Ofidismo...nome estranho, mas se você é fã de Harry Potter vai lembrar que ele é ofidioglota, ou seja, fala a língua das cobras. E ofidismo é o envenenamento causado pela introdução de toxinas no organismo, através de presas de serpentes.
Mas.... O que fazer diante de uma situação tão incomum como essa no nosso dia a dia? Bom, não é sempre que você terá lágrimas de fênix por perto para oferecer cura. Acompanha o texto para entender melhor sobre o assunto.
Por acaso você já ouviu uma historinha de que precisa levar a cobra junto para o hospital? Parece loucura, mas a verdade é que isso ajuda mesmo porque há um soro antiofídico para cada gênero de serpente.
Mas não se desespera porque se você entrar em pânico e não ter disposição para matar uma cobra (pode levar viva também, mas seria melhor evitar novos ataques) e levá-la à tiracolo; há outras maneiras de identificá-la.
Os sintomas, a partir da picada, farão com que os especialistas identifiquem o gênero do animal. Isso ocorre devido à absorção da toxina na corrente sanguínea para cada gênero de serpente, ocorrerão mecanismos de ação específicos, os quais manifestam-se distintamente.
Você sabia que existem 4 principais gêneros de serpentes de interesse médico no Brasil?
Gênero Bothrops – o acidente botrópico (ex: Jararaca) se manifesta em processo inflamatório no local da picada, com edema tenso e dor; em último caso, até necrose cutânea. Há também alteração da coagulação sanguínea, levando a sangramentos espontâneos.
Gênero Lachesis – o acidente laquético (ex: Surucucu) apresenta um quadro parecido ao anterior, mas também se observa manifestações como náuseas, vômitos, diarréia, bradicardia, entre outros.
Gênero Crotalus – o acidente crotálico (ex: Cascavel) leva apenas a um edema discreto e um formigamento/dormência; mas não se engane, esse veneno é bem traiçoeiro e se manifesta sistemicamente, resultando em paralisia neuromuscular, incoagulabilidade sanguínea e rabdomiólise (destruição de fibras musculares, afetando rins e sistema urinário - urina escura).
Gênero Micrurus – o acidente elapídico (ex: Coral verdadeira) apresenta quadro neuroparalítico parecido ao anterior, sem outros sinais e sintomas concomitantes.
Agora é fácil falar para você ter calma, mas se for realmente picado (esperamos que não!), pode ser que a serpente não seja peçonhenta e no máximo o local do ferimento forme um edema, traga um pouco de desconforto, afinal é uma picada, podendo ficar arroxeado depois. Porém, sem maiores problemas, além de um baita susto. Ou seja, não precisa nem dizer que se por acaso você encontrar uma cobra por aí, melhor não checar se é a cobra coral verdadeira ou a falsa, por exemplo.
Existem alguns fatores que podem prejudicar a recuperação quando alguém é picado:
retardo na soroterapia;
picada em extremidades (como pés e mãos); e
uso de torniquetes.
Portanto, em hipótese nenhuma, de maneira nenhuma, faça um torniquete; sua vida não é um filme de Hollywood, isso só prejudica a circulação no local e aumenta o risco de necrose.
Outros procedimentos importantes após uma eventual picada de cobra:
Não passe nada no local; se tiver água e sabão por perto, essa é a melhor escolha;
Não tem como você extrair o veneno, então não se corte, nem tente sugar; e
Vá até o hospital ou posto de saúde mais próximo.
ATENÇÃO: Não, nem todas as unidades de atendimento terão o soro antiofídico, mas, certamente, saberão o encaminhamento mais eficiente para você.
Na cidade do Rio de Janeiro, algumas opções são o Hospital Municipal Lourenço Jorge, Hospital Universitário Antônio Pedro, Hospital Municipal Pedro II, entre outros.
Nas referências, deixamos a Lista dos Polos de Soro, atualizada até 2018, para atendimento de acidentes ofídicos no Brasil, para você poder conferir qual é o mais perto, em caso de acidentes.
Prevenção a acidentes com cobras:
Se você for fazer uma trilha, não use chinelinho, por mais que você, possivelmente, seja carioca e for pegar uma praia depois, evite o pior. Use calçados fechados e, de preferência, de cano alto, também são recomendados para áreas rurais;
Se você for futucar a natureza em lugares inóspitos, use luvas grossas ao remexer o lixo, folhas secas, palhas e etc. Lembre-se que as cobras se misturam ao ambiente e muitas vezes podem se camuflar ao nosso olhar pouco apurado;
Não coloque mãos em buracos ou em ocos de árvore; e
Lembre-se que o calor e o acúmulo de lixo atraem as cobras para os centros urbanos. Então, deixe a faxina em dia para não ser pego de surpresa.
Antídoto
Para ser produzido o soro antiofídico, é necessário coletar o veneno da cobra e transformá-lo em antígeno. Os quais fazem com que o sistema imunológico reaja para produzir anticorpos. Então, esses antígenos são aplicados em cavalos em doses pequenas (a saúde do animal não é afetada), o que resulta em produção de anticorpos. Após a produção suficiente de anticorpos, o plasma é coletado. Sob os testes necessários, o material é submetido a processamentos industriais, gerando, então, os chamados soros antiofídicos. Ao ser administrado no paciente, os anticorpos contidos no soro em contato com o veneno, neutralizam a ação do mesmo, gradativamente.
Jararaca e seu veneno
No Brasil, as picadas de Jararaca (Bothrops jararaca) correspondem a mais da metade dos acidentes com humanos envolvendo serpentes. Para entendermos melhor o mecanismo de ação: a jararagina, uma das toxinas que causam a hemorragia, é uma metaloproteína que se fixa às proximidades dos vasos, fazendo uma ligação aos componentes de matriz extracelular. Como estes é que dão estrutura aos vasos sanguíneos, isso afeta sua integridade (dos vasos) e incita o sangramento local, um dos principais sintomas do envenenamento.
A Jararaca e a Indústria Farmacêutica
O médico brasileiro Sérgio Henrique Ferreira descobriu, na década de 60, que o veneno da Jararaca potencializava os efeitos da bradicinina, que é um hipotensor no nosso organismo. Nossos estudos foram aproveitados pela Bristol-Myers Squibs (EUA), viabilizando a síntese do Captopril e revolucionando a Indústria Farmacêutica, no que culminou em uma nova classe de medicamentos para a intervenção na pressão alta.
Por fim, aos apaixonados pela natureza, fiquem tranquilos. Segundo o Ministério da Saúde, dos casos de acidentes ofídicos, apenas 0,4% levaram a óbitos. É difícil ser pego de surpresa e se por acaso avistar uma cobra, dê meia volta, mas não precisa abandonar suas trilhas por medo.
Referências:
BUTANTAN. Foi picado por uma cobra? Saiba o que fazer e o que não fazer nessa situação, 3 mai 2022. Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/foi-picado-por-uma-cobra-saiba-o-que-fazer-e-o-que-nao-fazer-nessa-situacao. Acesso em: 10 jan. 2023.
CITELI, N. Q. K. et al. Lista dos Polos de Soro para atendimento de acidentes ofídicos no Brasil. SINITOX - National Toxic-Pharmacological Information System, 2018. Disponível em: https://sinitox.icict.fiocruz.br/sites/sinitox.icict.fiocruz.br/files/Lista%20de%20Polos%20de%20Soro%20para%20Atendimento%20de%20Acidentes%20Of%C3%ADdicos%20no%20Brasil_01.pdf. Acesso em: 10 jan. 2023.
CORDEIRO, CARLOS EDUARDO CARDOSO. ANÁLISE DE PERFIS PROTEICOS DE VENENOS DE SERPENTES DO GÊNERO BOTHROPS.
FERREIRA, Sérgio Henrique. Um Fator Potenciador da Bradicinina no Veneno de Bothrops jararaca. British Journal Pharmacology, v. 24, p. 163-169, 1965.
USP. e-Disciplinas. Tópicos de Pesquisa nas Ciências Contemporâneas. Captopril: Um dos maiores fármacos descobertos no Brasil, 30 maio 2019. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/mod/page/view.php?id=2762943. Acesso em: 10 jan. 2023.
ESCRITO POR: Carolina Rodrigues Monteiro Barros (aluna de graduação em Farmácia - UFRJ)
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