Crise dos Opioides nos EUA e suas lições
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O que são opioides?
Os opioides são substâncias que se ligam aos receptores opioides do sistema nervoso central. Podem ser de ocorrência natural (opiáceos), como a morfina e a codeína derivadas diretamente do ópio da papoula, semissintéticas, como a heroína (derivada da morfina), ou sintéticas, como o fentanil e a metadona, que, embora tenham estruturas químicas distintas, atuam nos mesmos receptores.
Essa classe de substâncias é composta por potentes analgésicos, frequentemente utilizados no tratamento de dores agudas, crônicas e oncológicas. No entanto, seu uso indevido pode causar efeitos como sensação de euforia, dependência química e overdose, especialmente em casos de uso prolongado ou em doses elevadas.
Reconhecidos pela primeira vez em 1800 como eficazes analgésicos, os opiáceos eram
amplamente utilizados para tratar diversas doenças cotidianas e eram comercializados de forma indiscriminada por médicos e farmacêuticos. Esse cenário mudou com os estudos de James Adams, em 1889, que alertaram para os riscos e malefícios do uso indiscriminado dessas substâncias.
O que é a crise dos opioides nos EUA?
Iniciada principalmente na década de 1980, a crise dos opioides está intimamente ligada ao aumento maciço da prescrição desses medicamentos para o tratamento da dor nos Estados Unidos.
Na década de 1990, o uso indiscriminado passou a ser legitimado por um movimento
crescente de entidades e empresas da indústria farmacêutica, que defendiam e divulgavam a importância do tratamento da dor como um quinto sinal vital no diagnóstico de um paciente e incentivavam o uso e a prescrição de opioides para dores cotidianas como musculares, de cabeça e crônicas sem uma análise criteriosa.
Tal mudança no cenário hospitalar foi essencial na criação de um senso comum de extrema relevância do tratamento da dor na sociedade americana além da gerar lucros exorbitantes para a indústria farmacêutica através da venda advinda dessa alta taxa de prescrições.
As Ondas da Crise dos Opioides
Entre 1999 (primeira onda) e 2008, houve um aumento de quatro vezes nas vendas de
opioides, proporcional ao aumento nas mortes por overdose. A crise evoluiu rapidamente: em 2010 (segunda onda), o uso de heroína levou a cerca de 40 mil mortes. Em 2013, teve início a terceira onda, marcada pelo crescimento do mercado ilegal de fentanil. De 2015 a 2021, ocorreu a quarta e mais letal onda: o fentanil, seja prescrito ou ilegal, e sua combinação com outras drogas foram responsáveis por 66% das 100 mil mortes por overdose registradas apenas em 2021.
Transtorno por Uso de Opioides (OUD)
Dadas as informações anteriores, o uso indevido e exacerbado de opioides levou à
caracterização do Transtorno por Uso de Opioides (OUD), uma condição médica reconhecida que se manifesta quando o indivíduo perde o controle sobre o consumo de opioides, mesmo diante de consequências negativas geradas por esse. O transtorno envolve sintomas como necessidade de doses maiores para obter o mesmo efeito, abstinência, desejo intenso de uso e prejuízos funcionais em áreas como trabalho, vida social e saúde física ou mental.
O OUD pode ser leve, moderado ou grave, dependendo do número de critérios atendidos. Ele é atualmente tratado por meio de terapias comportamentais e o uso de medicamentos que auxiliam na redução do desejo e prevenção da recaída.
Agravantes
Essa crise afeta desproporcionalmente a população de classe média e baixa, com destaque para comunidades afro-americanas em regiões mais carentes, onde o acesso a tratamentos não farmacológicos como fisioterapias, cirurgias e tratamentos mais complexos e demorados é limitado pelo alto custo e pela burocracia do sistema de saúde norte-americano. Isso leva muitas pessoas a recorrerem a medicamentos paliativos, entre eles os opioides, o que favorece o desenvolvimento de transtornos de uso.
Outro agravante é o fenômeno cultural do uso excessivo de medicamentos nos EUA,
alimentado por forte marketing farmacêutico e a banalização da automedicação, com
comerciais que incentivam o consumo para qualquer tipo de dor. Além disso, a forma como a crise é tratada midiaticamente e no senso comum da população como um “problema de gente branca” invisibiliza a dura realidade vivida por minorias raciais, especialmente a população negra, que tem sido duramente impactada.
Do ponto de vista das políticas públicas, os esforços têm sido fragmentados, muitas vezes focando no combate a uma droga por vez, ignorando o caráter multifatorial do problema já que muitos usuários combinam opioides com outras drogas.
Conclusões
É evidente a urgência de reformular o sistema de saúde dos Estados Unidos para lidar de forma abrangente com a crise dos opióides. Os números de overdose e mortes não refletem totalmente a extensão do dano causado, que se estende à família e comunidade dos usuários que também lidam com perda de produtividade, trauma intergeracional, aumento da criminalidade, além da pressão e colapso dos serviços de saúde.
Atualmente existem políticas públicas de apoio ao usuário. Entretanto, a crise dos opioides não é apenas uma epidemia de saúde pública, mas também um reflexo das desigualdades sociais, econômicas e raciais profundamente enraizadas na sociedade americana e deve ser combatida com responsabilidade, prevenção, acesso igualitário à saúde e justiça social.
Brasil e os Opioides
No Brasil, o panorama do uso de opioides difere significativamente em relação à sua
dimensão. Isso se deve ao fato de o país ter um histórico tradicionalmente conservador quanto à prescrição desses medicamentos. Há uma década, o Brasil era criticado internacionalmente pela baixa prescrição de opioides, mesmo em casos nos quais seu uso era indicado.
Atualmente, existem grupos de médicos especialistas que realizam prescrições com maior frequência. No entanto, entre 2012 e 2023, a taxa de uso de opioides na população geral saltou de 0,8% para 7,6%. Em 2019, estudos apontaram que aproximadamente 4,4 milhões de brasileiros já haviam feito uso de opioides sem prescrição médica, números que refletem a realidade dos Estados Unidos há cerca de 15 anos.
Além disso, tem-se observado um crescimento na atenção dada ao comércio ilegal dessas substâncias. Embora ainda incipiente, esse mercado existe e pode se expandir, especialmente por meio da mistura de opioides com outras drogas mais comuns e acessíveis.
Dessa forma, fica evidente que, com o aumento do consumo dessas substâncias, o risco de uma crise de saúde semelhante à vivida pelos Estados Unidos se torna mais concreto. Entretanto, a situação ainda se encontra em uma dimensão relativamente controlada e pode ser revertida com a implementação de políticas eficazes de saúde pública, fiscalização rigorosa e combate estruturado ao mercado ilegal.
Reflexão
Esse fenômeno revela como a saúde pública pode ser distorcida por interesses corporativos, resultando em tragédias humanas e em um sistema de saúde cada vez mais excludente. A epidemia também mostra a fragilidade das políticas de regulação e fiscalização, especialmente quando o bem-estar coletivo é colocado em segundo plano.
No Brasil, embora exista um sistema público de saúde complexo, o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como princípio a universalização do acesso à saúde, o acesso aos serviços varia significativamente entre as regiões e entre diferentes estratos sociais, além de questões relacionadas à demora, lotação e problemas gerais do atendimento público, o que pode abrir espaço para o abuso de opioides e futuramente situações semelhantes à crise americana caso não haja uma atenção constante e evolução do sistema de saúde pública.
Portanto, a crise dos opioides deve servir como um alerta para o Brasil. É essencial investir em prevenção, regulação rigorosa e fortalecimento do SUS, garantindo que o cuidado com a saúde esteja sempre acima de interesses econômicos e que a dignidade humana seja o centro das políticas públicas.
Referências Bibliográficas:
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SilvaE. R. C. T.; MouraM. M. de A.; SiqueiraE. C. de. Transtornos relacionados ao uso de
opioides. Revista Eletrônica Acervo Saúde, v. 24, n. 4, p. e14637, 15 abr. 2024.
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